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Sandra Campos
    Sandra Campos nasceu em Feira de Santana-BA e formou-se em Pedagogia pela UEFS. Na universidade começou a escrever crônicas que eram lidas em algumas aulas. Voltou a escrever em 2013, por prazer pessoal. Em 2014 passou a publicar seus textos no jornal A Tribuna, de Rondonópolis-MT, cidade onde mora atualmente e desde 2015 é colunista do Viva Feira. A primeira crônica publicada em agosto de 2014, “O homem avulso”, já revelava as linhas de força de seu estilo: a escrita leve e espontânea, o lirismo e a intertextualidade, o olhar sutil e ao mesmo tempo agudo dos lances da vida. A crônica “Leve sua filha à feira”, escrita em janeiro de 2014, retrata a feira livre da Estação Nova, que ela costumava frequentar aos domingos com duas amigas de infância. Essa crônica leva o leitor a pensar na beleza e nas lições que não raro se ocultam sob a pseudobanalidade do cotidiano. A crônica que a autora considera a mais carregada de sentimentos e emoções, e também a mais comentada no site do jornal, é “A carta”, uma homenagem a sua mãe Celina. A cronista lançará em breve seu livro de estreia, “O homem avulso: crônicas e contos”, Editora Penalux. Aguardem.  (Texto: Marcelo Brito da Silva)



CRÔNICAS E OUTROS TEXTOS

Casa de vó


Publicado em: 08/05/2016 - 13:05:25


Ver a casa ser demolida, cada telha velha, cada ripão podre, cada tijolo largo, cada árvore frutífera sendo arrancada pela raiz, elas que um dia me alimentaram, serviram de brinquedos, acolheram minha imaginação infantil e até meus sonhos, causou-me sofrimento. Mas a perda da casa de meus avós paternos, na Rua Brigadeiro Eduardo Gomes em Feira de Santana, que ficava ao lado de nossa casa, há muito tempo já não dói em mim. Pelo poder reconstrutor da memória posso levantar cada parede branca, o hall de entrada com seu piso em mosaico português com tons rosa e azul, as janelas e portas azuis, o telhado alto, o piso em tijolo quadrado e sextavado que cobria os quartos, a sala de estar e a sala de jantar. Haja água, vassoura de piaçava e sabão em pó para lavá-lo, uma vez por mês, com o auxílio de Dona Mocinha, uma mulher laboriosa, baixinha, magra, de andar ligeiro, que auxiliava nossas famílias e outras do bairro nos afazeres domésticos. Ela já partiu para outra vida, mas sua memória ficará eternizada. Como nós a amávamos! E como ela nos amava! Os filhos de Celina! Dona Mocinha, meus abraços e beijos, nossas saudades.

Pela memória posso circular pelos quartos e me deitar na cama de minha avó Izabel, que todos chamavam de Zabilinha. Uma mulher pequena, de cabelos lisos e longos envolvidos numa popa presa com ganchos grandes. Uma mulher firme e ao mesmo tempo terna, que todos amavam, beijavam, abraçavam. Falava pouco, observava mais, era organizada e pontual. Posso vê-la circular pela casa calçando seus chinelos macios, seu vestido solto com bolsos ou sentada em sua cadeira de balanço, cochilando após o almoço. Posso abrir a janela do seu quarto e sentir aquele vento forte noroeste que fazia daquele vão da casa o melhor lugar das tardes de domingo, dia em que a família se reunia e os primos brincavam e brigavam juntos. Posso abrir seu guarda-roupa e sentir o perfume do talco que ela usava todos os dias após o banho da tarde.

Atrás da porta do seu quarto ficava pendurado um vestido e em seu bolso ela escondia a chave da cozinha, esconderijo descoberto por meu irmão Osanar. Na cozinha ficavam as latas de mantimentos em alumínio, dispostas em cima do armário. Na última lata ela guardava os biscoitos para os netos, e haja netos, além dos cincos filhos de Amadeu que cresceram ao seu lado, até meu avô morrer e a casa ficar maior ainda e as memórias e sua idade avançada fazê-la mudar de casa. Posso passar pelo terceiro quarto e ver os quadros com as imagens dos santos na parede, que refletiam sua fé católica, a mesinha de madeira onde minha vó ascendia a vela ao anoitecer e ao amanhecer trocava as flores colhidas em seu jardim: rosa dália de várias cores, rosa menina, cravo, margarida, simplesmente rosas, lindas, cheias de cores e encantos que tornavam nossa vida e o seu quintal um manto de alegria e paz.

No terceiro quarto dormia o meu avô Joaquim, chamado de Sinhozinho. Ele era alto, magro e argumentador.  Pelas vias do destino ficou cego aos cinquenta e oito anos. Quando eu nasci vovô já era cego. Cresci achando que a cegueira lhe chegou após ter ele caído de um cavalo, mas há poucos anos descobri que teve glaucoma, descoberto tardiamente, tirando-lhe a luz do dia, as cores da vida. Imagino como deve ter sido difícil para ele lidar com a cegueira, se readaptar a uma vida sem cor. Eu me lembro dele tateando o muro externo até chegar à casa de minha mãe, para onde ele ia algumas tardes tomar café e conversar com ela. Também posso vê-lo caminhando lentamente, beirando as paredes até a cozinha, onde se sentava no banquinho de madeira em volta da mesa. Minha avó só o chamava para o café da manhã quando o seu mingau de maizena estivesse pronto e colocado em seu prato de esmalte branco. Ele comia com gosto, tocando com o dedo o alimento. Eu me lembro bem, gostava de ouvir suas histórias, seus causos:

- Ô, Sinhô!

- Inhô?

- O partido de Zé Vieira subiu.

- Isso é conversa. A quem é o seu voto?

- Se compadre Zé Vieira subir, eu subo com ele. Se compadre Zé Vieira descer, eu desço com ele.

Vovô e suas histórias que eu gostava de ouvir enquanto raspava a panela do seu mingau, que minha avó algumas vezes deixava para mim, coisa de criança, mas não esqueço o sabor daquele mingau, nem o sabor de sua comida, nem do seu macarrão, pois tudo que ela cozinhava era simplesmente delicioso. Que saudade da minha vó Zabilinha! Quantas lembranças da morada dos meus avós paternos, do mágico casulo onde se gerou as metamorfoses decisivas da criança que fui e da adulta que hoje sou. Que saudade da casa de vó!

 



Fonte: Sandra Campos/A Tribuna MT







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