Feira de Santana na minha infância e adolescência era uma cidade eminentemente católica, é bem verdade que hoje não podemos fazer essa mesma afirmação, até em função do crescimento populacional e do surgimento de outras religiões. Também devemos considerar a tomada de consciência, de toda sociedade, pelo respeito ao direito de escolha de cada cidadão, uma evolução natural pautada nas pretensões democráticas consagradas em nossas instituições. Mas há cinquenta anos passados, pensar em outra religião era motivo de discriminação na certa, de modo que, muito poucas manifestações religiosas, fora da católica, tinham a aprovação da sociedade no sentido mais amplo. Havia uma Igreja Batista que se destacava na Rua Visconde do Rio Branco, mas confesso que, mesmo, apesar de aceita, havia muito preconceito.
Por outro lado, ainda que conscientemente se negasse somos uma comunidade mulata (negra), que o preconceito obrigava a afirmar branca (apenas pela aparência mais clara da pele), atitudes que só a antropologia e a sociologia podem explicar do ponto de vista histórico. Mas a verdade é que nossa negritude não deixava de falar alto em nosso inconsciente, de modo que os terreiros de macumba (umbandas e candomblés), como eram denominados os Centros Espíritas das religiões afro-descendentes, sempre proliferavam pelos bairros mais distantes da cidade, e pasmem, muitos eram bem frequentados por personalidades da sociedade "dominante".
Dentre os terreiros que se popularizaram através de uma certa aceitação social, dois se destacavam pelo carisma de suas líderes, o Terreiro de Mãe Socorro na Rua Nova, que chegou a participar com suas Filhas de Santo da peça Terra de Lucas, montada por Franklin Maxado, o que lhe conferiu muito prestígio social e aceitação, e o terreiro de Helena do Bode, também na Rua Nova, muito bem frequentado por políticos e outras personalidades, mas que se tornou mais conhecido pelo temor que causava na criançada, do que por qualquer outra característica religiosa que pudesse ter.
O apelido de Helena do Bode deve-se ao fato dela ter sido proprietária de alguns caprinos, que viviam soltos pela região, entre os quais, havia um bode preto, de grande porte, que corria a "boca pequena" ser o marido da Mãe de Santo, que pelo fato do ter cometido algum deslize, ela teria transformado o cidadão no tal bode. É claro que tudo isso era pura "conversa fiada", ficção bem nordestina e provinciana, lenda urbana de cidade do interior. Alguns acreditam em lobisomens, e outros mitos, nós acreditávamos piamente que Helena transformava seres humanos em bodes.
Helena pelo que me lembro era uma negra forte de seios avantajados, que naturalmente por não existirem sutiãs com seu número usava uma faixa de seda sustentando as duas volumosas mamas, por cima da roupa, o que lhe conferia uma característica própria na maneira de se trajar. Os meninos morriam de medo da Mãe de Santo, que ao que se sabe, pela história exótica da transformação do ex-marido em um bode, passaram a dizer que ela poderia fazer isso com qualquer desafeto ou pessoa, a pedido de quem fosse ligado a ela. Meninos que vivem com as consciências pesadas das traquinagens que costumavam fazer, morriam de medo de qualquer tipo de punição e, ser transformado em bode era ainda mais sério.
Fantasia gera fantasia e mentira gera mentira, a fama que corria a respeito da magia de Helena, criava estórias e expectativas de toda sorte, na rua onde residi durante toda minha infância, dentre os meus amigos existia um chamado de Galego, que era mestre em inventar estórias, e adorava falar dos poderes de Helena afirmando sempre, e oportunamente, que seu pai, o dono da venda, era conhecido da família da macumbeira, e que se ele pedisse, ela transformaria quem ele quisesse em bode. Todos fingiam não levar a sério, mas a verdade é que todos sentiam medo daquela conversa e, quando possível, disfarçavam para não valorizar as afirmações de Galego, que costumava dar umas risadinhas maliciosas quando sentia que estávamos fugindo do assunto. Era dos mais terríveis em traquinagens, de modo que estava sempre intrigado com alguém, e necessitava do temor dos outros para não apanhar. Se era um dos mais danados entre os meninos da rua, por outro lado, fisicamente, era dos mais franzinos, e realmente necessitava da sombra de Helena do Bode para protegê-lo de suas vítimas.
Contam que Helena faleceu em uma mesa de cirurgia na tentativa de fazer uma correção nas mamas, embora fosse volumosa e apesar de não ter muita altura e pesasse mais de cem quilos, sentiu necessidade de reduzir os seios, naturalmente por problemas de saúde. Muitos políticos da região que viviam buscando apoio em seus serviços e confiantes em suas previsões ficaram órfãos, e naturalmente decepcionados por Helena ter tido uma morte tão humana, quando sua imagem nos fazia pensar em uma mulher poderosa, que para alguns tinha poder de vida e morte, mas a existência é assim mesmo, tem sempre uma lição quando menos se espera. Se vierem me contar que Galego anda desmentindo essa história e espalhando que na verdade Helena se transformou em uma Cabra para usufruir dos carinhos de seu bode, e que ele sabe onde encontrá-la, eu não duvido nada.
OBSERVAÇÃO :
- No livro de autoria da Professora Lélia Vitor Fernandes de Oliveira, "Cidadão do Mundo", relata dados biográficos de Helena do Bode, às fls. 38.
- Franklin Maxado tem um cordel escrito em homenagem a Helena do Bode, com muitos detalhes sobre a vida da Mãe de Santo.
