
A
BALADA DE INÊS...

Súplica
de Inês de Castro de Vieira Portuense. Óleo sobre
tela (165X275); Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
–
Verás, amada minha
tuas mãos terminadas em segredo
sobre um peito de sopros findos
e então sentirás dentro de ti uma completude
como as folhas que mortas deixam nua aquela essência de
vida
que as árvores nos trazem sobre os galhos
secos e escuros, como a carne que à terra volta
pois é da terra a carne, como do vento
a nuvem e sua possível imagem.
Também
verás
os teus olhos fechados em repouso
e, na noite escura dos desejos sólidos
velar teu sono, com mil olhos claros
o coração que sofre de amor e de saudade e
que um dia, em tarde clara disse-te em segredo
“Amo-te!”, como ama em segredo, ao sentimento, a Sabedoria
pois é do mar o cais e a imensidão
que amedronta e também encanta.
Nesse momento, amada minha
quando fechada sobre um leito de duras sombras
combinadas: a dor, a ausência e a distância
na noite imensa de teu coração tão quieto
verás o meu Amor refeito em sonho leve
e toda a realidade te parecerá vazia,
como um Céu que um dia olhaste sem ternura e sem verdade...
DA
OLARIA À OURIVESARIA: ALOÍSIO RESENDE & O BIG
BROTHER BRASIL DOS INTELECTUALÓIDES

Aloísio Resende (1900-1947)...
Nuestras convicciones más
arraigadas,
más indubitables,
son las más sospechosas.
Ellas constituyen nuestro
límite, nuestros confines,
nuestra prisión.
ORTEGA Y GASSET
Parece-me, caro leitor,
que a biografia moderna considera o homem em todos os seus aspectos,
buscando fixar a humanidade do seu personagem. Pelo menos é
o que afirma Edvaldo Boaventura em seu No Território da
Palavra; seu objetivo “é a transmissão verídica
de uma personalidade”; buscando o homem com as virtudes
e os defeitos inerentes a raça humana. Mas, no fundo no
fundo, em termo do que interessa realmente à poesia, estes
aspectos estão mais para um Big Brother Brasil dos pseudo-intelectuais
do que verdadeira ciência e literatura.
Olhem o caso de um Augusto
dos Anjos, por exemplo: nem um poeta de nossas Letras foi mais
vitimado pelos estereótipos do que ele – estereótipos
esses advindos tanto dos leitores ingênuos como da crítica
dita especializada, mas que nada mais é do que uma propagadora
de tolos ideais etnocêntricos e multiculturalistas que pouco
ou quase nada acrescentam à poesia e à sua verdade
estética. O poeta paraibano, por mais que fosse, à
sua maneira, um revolucionário, dono de um artesanato poético
sem precedentes em nossa história, quase sempre foi focalizado
como um tuberculoso sofredor e depressivo; um anti-herói
errante em sua própria angústia e dor, representado,
como diria Antônio Houaiss, por “versos herméticos,
onde, por vezes, se escondem cisma extremamente patológicas,
psicologia doentia”, et cœtera e tal. Antônio
Houaiss, também, nos lembra que, “em conseqüência
dos usos simbólicos feitos por Augusto dos Anjos, de um
material não raro de procedência científica,
dos usos analógicos e corretos para fins de enlace estético
e emocional, desde sempre se manifestou entre nós de interpretar
a poesia de Augusto dos Anjos como uma poesia exótica,
cuja chave – como a de Cruz e Souza – poderia estar
na sistemática de certas doutrinas orientais místicas”...
Já pensou?!
Mas muito longe de ser
um poeta conhecido e aclamado, como Augusto dos Anjos o é,
Aloísio Resende (1900-1941) não está livre
de interpretações semelhantes; e, mesmo a sua exígua
produção literária, torna-se vítima
de uma “visão multicultural” que leva muito
mais em conta os processos pessoais do autor como se esses valessem
muito mais do que a sua produção poética
ou como se estes fossem a poesia em si, não levando nem
mesmo em consideração aquela máxima de Fernando
Pessoa de que “o poeta é um fingidor”; máxima,
aliás, que vale muito mais do que toda a obra de Raymond
Williams.
Nascido na provinciana
Feira de Santana, no início do século passado, Aloísio
Resende era negro, pobre e, supostamente, um beberrão freqüentador
de candomblés e de quengueiros; seguindo os caminhos da
figura mística vitimada pela condição social,
pela cor e pela escolha religiosa que escrevia versos como quem
desabafa suas mágoas, em glorioso e talentoso protesto,
tornou-se um prato cheio para todos os oportunistas dos Estudos
Culturais de plantão, que o vêem como uma figura
lendária destituída de seu cânone, mas sem
olhar necessariamente (nem verdadeiramente) como poeta que era...
para variar.
Continue a leitura em: http://poetasilverioduque.blogspot.com/2011/05/da-olaria-ourivesaria-aloisio-resende-o.html

Ildásio
Tavares (1940-2010)
Morreu, hoje, às
17h, deste triste 31 de outubro de 2010, aos 70 anos, o poeta,
compositor, tradutor, mestre e, acima de tudo, amigo, Ildásio
Tavares. Internado no Hospital Jorge Valente, em Salvador, desde
o dia 27 deste mês, Ildásio sofreu um Acidente Vascular
Cerebral que ceifou a sua vida de poeta.
Segundo nota de Assis Brasil,
em A poesia baiana do século XX, pertence à geração
Revista da Bahia, juntamente com Cyro de Mattos, Fernando Batinga
de Mendonça, Marcos Santarrita, Alberto Silva. Estes, e
mais José Carlos Capinam, Ruy Espinheira Filho, Adelmo
Oliveira, José de Oliveira Falcón, Carlos Falck,
Maria da Conceição Paranhos entre outros "formam
um panorama fecundo e variado" a partir da década
de 60.
Possui vários livros
publicados, como Imago, Ditado, O canto do homem cotidiano, Tapete
do tempo, Poemas seletos, Livro de salmos, IX Sonetos da Inconfidência,
Lídia de Oxum, O amor é um pássaro selvagem,
O domador de mulheres, A arte de traduzir... entre outros. É
ganhador, entre tantos prêmios, do Leonard Ross Klein, de
tradução; do Afrânio Peixoto, de ensaio; do
Fernando Chinaglia, de poesia; e do prêmio nacional do centenário
de Jorge de Lima. É bacharel em Direito e licenciado em
Letras pela Universidade Federal da Bahia; mestre pela Southem
Illinois University; doutor pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro; pós-doutor pela Universidade de Lisboa.
Seu trabalho como jornalista
compreende participação em vários periódicos,
entre os quais, Diário de Notícias, Jornal da Cidade,
A Tarde e Tribuna da Bahia. Membro praticante do candomblé,
foi consagrado Ogan Omi L’arê, na casa de Oxum, e
Obá Arê, na casa de Xangô e no Axé Opô
Afonjá. É cidadão da cidade de Salvador desde
1986.
É muito difícil,
para mim, falar de tamanha perda; assim como à toda grande
Literatura Brasileira. Ildásio Tavares é da mesma
linha de um Bruno Tolentino ou um Ferreira Gullar. Sua vida e
sua obra se cercaram de uma busca incansável pela qualidade
poética e pela defesa da mais pura tradição
de nossas Letras. Homem formidável, polêmico, de
rara cultura e inegável talento, sempre foi solícito
aos novos aspirantes e jamais lhes negou o seu papel de professor,
como aconteceu a este humilde poeta, pois foi Ildásio quem
prefaciou, com sabedoria e elegância, o meu último
livro. Agora, como muitos, este humilde poeta, como muito, chora
a sua morte.
Como me faltam as palavras
“mais burocráticas” neste momento, talvez a
melhor maneira para me despedir de um poeta seja com poesia; por
isso, deixo, aqui, um soneto que fiz com base em um de seus poemas
e que eu, muito agradecido lhe dediquei, fazendo deste a minha
maneira mais sincera e particular de lhe dizer: obrigado, Mestre
e até breve, meu Amigo!
[OFÉLIA]
ao mestre, amigo e poeta Ildásio Tavares... este bastardo
Meu coração
é um cabedal de sonho
de dores que antecedem cada instante
e a noite há de chegar, assim suponho
como a pisada brusca de um gigante.
De ausência e de
desejo, em vão, componho
uma canção cafona e dissonante
e, ao ver tal despautério, então suponho:
sou talentosa como um elefante!
Ah, andai meus pés,
andai que o rio espera
nossas cruéis lembranças, nossos corpos...
pois quem jamais amou melhor viveu.
Se eu vejo outro nascer?
A Nova Era...?!
Eu vejo o que eu vivi; vejo os meus mortos;
quem dá valor a vida é quem morreu.

Cangaceiro de Ademir
Martins - Óleo sobre tela - . 100 x 81 cm. 1967.
PEQUENO CANTAR ACADÊMICO
A MODO DE REPENTE
ao escritor Raimundo Gomes... uma réplica
Caríssimo Raimundo Gomes,
não, o meu verso não é prece
como a todos, em vão, parece.
Sou de lugares sem seus nomes
e deles trago as minhas mortes -
todo amor que, por si, se esquece.
Do drama que me arrefece...?
dele é que eu tiro minhas sortes.
Meu verso é verso de galope:
de trote largo e olhar profundo,
com a dor e as voltas deste mundo.
Meu verso é verso de um só
mote
e é verso assim, tão combalido...
mas bem dosado e bem medido.

Viagem,
técnica mista sobre papelão paraná (80 x
100 cm), 2005.

Balada para Enone, técnica mista sobre papelão paraná
(80 x 100 cm), 2005.

Aportes da serra de Tanquinho, técnica mista sobre papelão
paraná (80 x 100 cm), 2005.

A eterna imanência, técnica mista sobre papelão
paraná (80 x 100 cm), 2005.

Balada para Cecília, técnica mista sobre papelão
paraná (80 x 100 cm), 2005.

Balada para Hilda, técnica mista sobre papelão paraná
(80 x 100 cm), 2005.
Já tive a oportunidade
- aliás, várias - de falar do trabalho artístico
de Gabriel Ferreira, mas não disse o quanto me enche de
orgulho o facto de eu, ou melhor, meu trabalho de poeta, servir
como uma rica fonte de inspiração para o trabalho
deste artista excepcional... Há alguns dias, em seu Blogger,
Gabriel Ferreira deu testemunho desta inspiração,
através da publicação de alguns trabalhos
baseados em meu primeiro livro. Todo primeiro livro é "o
primeiro livro": ingênuo, às vezes, cheio de
melhoras a se fazer, carregado com "as pernas dos outros"...
mas se serve de inspiração para um trabalho tão
bom, este poeta esteja exigindo demais de si...?! Bem!, segue,
na íntegra, as palavras de Gabriel... acima, os trabalhos
inpirados em alguns poemas do livro e, claro, o link para o Blogger
de Gabriel Ferreira:
"Mesmo após
5 anos do seu lançamento e o autor ter publicado um novo
livro em 2010, Baladas e Outros Aportes de Viagem, do poeta e
amigo, Silvério Duque continua fazendo sucesso. O referido
livro é a segunda obra literária do autor e o primeiro
que eu tive a satisfação de ilustrar a capa. As
ilustrações que se seguem são inspiradas
em poemas daquele livro, as quais participaram dos seus lançamentos.
São trabalhos de muita responsabilidade, pois, para além
da exigência do Duque (o qual é o principal crítico
da minha obra), eles marcam uma ascendência salutar em minha
vida de artista, pois foram bastante apreciados pelo artista plástico
Pirulito e pelo saudoso poeta Damário Dacruz na ocasião
do 1º lançamento no Museu de Arte Contemporânea-MAC
em Feira de Santana-BA, 2005. Escutei elogios dessas duas grandes
personalidades do Recôncavo Baiano e, deveras, senti-me
um pouco mais artista. Baladas e Outros Aportes de Viagem é
um livro bastante inspirador, pois, traz experiências interessantes
do Duque em suas andanças como professor, "menino
tanquinhense" e amor de uma mulher. Faço esse retrospécto
para que muitas outras pessoas venham a conhecer as coisas boas
da literatura que me servem de mote para pintar. Conhecer de perto
a dedicação do "Capitão do Mato"
Silvério Duque e sua doação à poesia
é penetrar em seu universo de versos decassílabos
e sonetos verdadeiros; cada linha que ele desenha é um
recital aprazível. Acima estão as fotografias das
obras que releem e tentam refazer visualmente a poesia que existe
em lugar importante na história".
GABRIEL FERREIRA
http://artistagabrielferreira.blogspot.com
Postado
por Poeta Silvério Duque no
POETA SILVÉRIO DUQUE em 7/10/2010 01:01:00 PM

O
LIVRO DE SCARDANELLI: O ESQUADRO DA LOUCURA
por Jessé de Almeida Primo
Começarei com um clichê imprescindível como
a maioria dos clichês: O livro de Scardanelli (É
Realizações, 2008), de Érico Nogueira, não
é uma obra comum. A discussão conteudístico-formal
que subjaz a essa obra não parece, à primeira vista,
familiar à nossa paisagem mental, muito menos à
lírica, ainda que tenha contato, como se verá, com
um poema de muito sucesso no Brasil.
De tal modo essa estranheza se manifesta que algum desavisado
poderia pensar que o livro é de autoria de algum estrangeiro
exilado nos trópicos, aborrecido com o sol infernal e que,
saudoso de sua terra, escreve diante de um freezer aberto e com
o ar condicionado ligado no máximo. Sim, a obra em questão
tem algo de gélido, mesmo quando fala de verão e
primavera; assim como nela tudo é noite, mesmo que brilhe
o sol. Dessa assimetria falarei mais adiante.
Seria, por acaso, uma tradução? Suspeitá-lo-ia
o leitor que já tenha passado pelo ciclo de Scardanelli
de Hoelderlin ou simplesmente aquele que leu o posfácio
do autor, em que ele explica que se limitou a emular tão-somente
“o metro, o ritmo e as rimas dos originais”. Isso,
sim, que é originalidade. O resto é conversa.
Não se trata de um mero paradoxo. Segundo escreve Carlos
Felipe Moisés no belo ensaio “Para quê poetas?”,
que acompanha O livro de Scardanelli, a verdadeira identidade
do poeta alemão, numa rara demonstração de
loucura, é enterrada sob este curioso pseudônimo
à italiana. Já na emulação feita por
Érico Nogueira, mais uma vez com Felipe Moisés,
há uma tentativa de recuperação dessa identidade.
Nessa emulação, o autor resgata a tradição
da imitação que praticamente se findou com o apego
desesperado aos direitos autorais, o que certamente tenha coincidido
com o advento da indústria do livro. Talvez Manuel Bandeira
seja uma exceção se levarmos em conta os seus “À
maneira de”. Fora isso, temos as famosas imitações
de Homero por Virgílio, as de Petrarca por Camões,
as de Camões por Góngora, as de Quevedo por Gregório
de Matos, ou seja: entre os melhores estavam aqueles que melhor
imitavam. Imitação essa que estava muito longe daquela
empreendida por um escritor inventado por Borges, cujo “Don
Quijote” reproduzia exatamente o texto de Cervantes, mas
teve sua originalidade garantida por tê-lo escrito no século
XX. A imitação de que aqui se fala é antes
de tudo intimidade com a arquitetura dos poemas originais, é
procurar realizar determinada forma tão bem quanto aquela
que inspira essa imitação. Quanto às motivações
da emulação aqui estudada, veremos mais adiante.
Horácio
esteve aqui
"Se
as cores se fundiram em verde-musgo," (Hora Média,
Livro de Horas)
"As
folhas já se foram há certo tempo,
há certo frio rochoso nas escarpas," (Vésperas,
Livro de Horas)
"(...)
O tédio
me faz seguir a tortuosa rota
da mesma água para foz ignota
em vez de atravessar um vau inédito
que acaba onde se quer. Mereço crédito?" (Soneto
5, Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama)
"A
terra limpa e arada,
o vento encurvando as oliveiras," (Dois hálitos, Cadernos
de Exercícios)
Os versos acima são alguns dos belos exemplos d’O
livro de Scardanelli, constituído por 72 poemas que se
distribuem em três partes: “Livro de horas”,
23 poemas compostos segundo a pauta determinada pelos que formam
o ciclo Scardanelli, de Hoelderlin; “Cancioneiro Inglês
ou de Sandra Gama”, uma seqüência de 24 sonetos
em que uma linguagem, digamos, mais contemporânea - sem
contar os registros lingüísticos mais clássicos
também -, encontra maior adequação numa forma
muito característica da tradição inglesa,
que é justamente o soneto inglês; e, por fim, as
formas mais variadas (do soneto, passando por formas em que mais
predomina a quantidade da poesia greco-latina que o metro silábico
do português, até a oitava camoniana) dão
o tom de “Cadernos de Exercícios”, justificando
dessa forma o seu nome. Mas os exemplos supracitados não
foram escolhidos pela sua beleza, e sim por força de um
aspecto que une as três partes de que esta obra é
constituída: sua limpidez geométrica. Como se vê
também pelo colorido bucólico de muitas dessas composições,
estamos diante de uma obra neoclássica concebida em pleno
século XXI.
A opção por uma referência pretérita,
por sua vez, fundamentada em outra ainda mais remota, que é
a poesia greco-latina clássica, não se explica pela
vaidade erudita, “there is a method on it”. A escolha
neoclassicista é antes de tudo tática, pois é
uma forma de expressão, digamos, tão geométrica
quanto a loucura. (Antes de prosseguir, não quero dar a
entender que os renascentistas e os neoclássicos eram loucos,
mas com certeza os loucos são renascentistas ou neoclássicos...)
Não estranhe o leitor essa consideração,
pois nada tão organizado quanto a mente de um louco, que
odeia as coisas fora de lugar; mais ainda, a assimetria perturba-o
à exasperação. A loucura não é
simplesmente uma desordem mental ou uma forma de desarticulação
espiritual. É a pretensão de impor uma ordem ou
uma forma justamente onde estas não se manifestam, pelo
menos não do modo esperado. É o desejo de que tudo
se encaixe, de que tudo se explique, enfim, é um desejo
tão solar quanto desesperado de simetria. Quando, porém,
a realidade se revela “desajustada”, nada resta senão
criar um mundo harmônico, dotado de uma perfeição
geométrica, onde tudo funcione, ou, quiçá,
idealizar uma época em que tudo era bom, em que os campos
eram mais verdejantes, quando o homem e a natureza davam-se as
mãos. Esse aspecto da loucura como sede de simetria é
a grande sacada de O livro de Scardanelli, de Érico Nogueira,
em que um verdadeiro inferno espiritual habita formas harmoniosas
e versos tão límpidos quanto os rios à beira
dos quais descansam cabras e pastores.
Se a tranqüilidade dos pastores romanos parecia genuína,
a dos renascentistas parece calculada, e esse cálculo parece
atingir seu ápice na produção dos poetas
neoclássicos, de modo que os pastores e suas cabras, a
despeito da qualidade de sua poesia, mais lembram criaturas saídas
de uma incubadora que de uma natureza suja, hostil e fugidia.
Como não se lembrar de Marília de Dirceu, de Tomás
Antônio Gonzaga? Marília, assim como Sandra Gama,
da segunda parte do livro de Érico Nogueira, dá
a impressão de ser algo próximo de uma sombra mental,
como nos ilustra o autor no seu 22º soneto, quebrando assim,
como nos lembra Felipe Moisés, a expectativa sensualista
do leitor. E como não se lembrar de O mundo como idéia,
de Bruno Tolentino, a quem, não por acaso, o livro é
dedicado? O que é essa geometria obsessiva senão
o inferno que Tolentino tão bem traduziu na imagem de “um
puro palácio aritmético”?
Curiosamente, o "Cancioneiro Inglês", pouco importa
se deliberadamente ou não, e a despeito de seu aspecto
farsesco, é o Marília de Dirceu de nossa época:
tanto em um como em outro há um sujeito que, num processo
de interiorização, - e entre várias elucubrações
- rumina o nome de uma mulher cuja existência parece mais
criação de uma mente solitária que um fato
concreto. Acontece que no "Cancioneiro Inglês",
principalmente a partir do 18º soneto, a confusão
se estabelece e a loucura parece atingir o paroxismo: ora a existência
de Sandra Gama é carnalizada e a presença do amante
se abstratiza, ora é a presença dela que se anula
e o amante recupera a sua, ora ambos somem de uma vez:
"Por
isso não conheço com quem lido:
pois de mim mesmo sou desconhecido." (soneto 19)
Fernando
Pessoa compreendeu tão bem (para não dizer dolorosamente)
o fenômeno do desespero geométrico que se poderia
dizer que seu heterônimo mais angustiado é Ricardo
Reis, precisamente um poeta horaciano neoclássico. Se a
expectativa da morte ou de uma constrangedora decepção
e a certeza da contingência se interpõem entre ele
e sua Lídia (“desenlacemos as mãos, porque
não vale a pena cansarmo-nos”), a destemida voz que
procura atingir os sentidos de Frederico ou a que predomina no
"Caderno de Exercícios" manda esse pudor às
favas:
"Quando
passou, então, por essas frutas,
a água não molhou – ficaram, pois, enxutas,
sem que um teu dente ao menos as marcasse;
aonde a água ia que o justificasse?" (Hora Média)
"pensar
e não comer, que idéia louca." (As pêras
de Diana)
Ou
seja, o que poderíamos chamar de convenção
de escola acabou servindo ao propósito de, a um só
tempo, garantir-lhe a permanência e discutir, com seus próprios
termos, o que subjaz a essa convenção.
Essa assimetria, sombriamente introduzida com o verso “A
hora lúcida de cara dupla”, do poema "Visão",
o primeiro do livro, é o que também percebemos em
todo "Livro de horas", onde se conta a história
de dois seres condenados a não se encontrarem, daí
que a voz dirigida a Frederico só seja ouvida pelo leitor.
Ela nunca chega ao que deveria ser o principal interessado. Curiosamente,
a “cara dupla” da referida “hora lúcida”,
que é o leitmotiv da obra, tem algo de “a pair of
star-cross’d”, que é o leitmotiv de Romeu e
Julieta presente no soneto que serve de prólogo à
peça – aliás, um casal presa de uma paixão
às escuras por conta da inimizade entre suas famílias
e cujo amor, numa trágica manifestação de
assimetria que parece se opor à realização
de um desejo, fora comprometido pela artimanha por meio da qual
esperavam consumar esse amor de maneira plena.
A “cara dupla”, a assimetria, a falta de convergência
entre objetivos, mais ainda, a presença de objetivo em
um e a falta total de objetivo em outro explicam uma evolução
notada na voz que fala, mas não naquele a quem ela se dirige.
Além disso, a natureza toda parece brincar em torno de
uma figura tão paralisada quanto a que se apresenta em
um quadro de natureza morta:
"Um
lume chega – ou vem do alto, ou vem de baixo,
a treva, devagar, expele um novo dia;
sorriem bocas, mas num outro pasto,
que neste não há boca que sorria." (Dilúculo)
Afinal,
o que esperar de alguém cuja mente é um universo
paralelo com o qual não se consegue estabelecer um contato
genuíno? É o que parece acontecer também
na Balada do cárcere, do já citado Bruno Tolentino,
onde uma voz fala de um encarcerado conhecido como Numeropata
(“Era o 212/voltava a cara ou as costas/ se alguém
o chamava Ambrose”) ou a ele se dirige (“Dorme, Minotauro,
mouro/ da mais amarga Veneza...”). Por outro lado, apesar
de em ambas as obras haver uma tentativa de resgate de uma identidade
perdida no imenso palácio da loucura, há um abismo
que as separa: numa, há uma voz luciferina-epicurista que
procura – pela apropriação da estrutura poética
alheia que é a do próprio Hoelderlin, e assim penetrando
no seu delírio - despertar uma consciência recolhida
com uma solução, como diria o apóstolo Paulo,
“segundo a carne” (“por isso goza, Frederico,
a parte/ que do todo puder a tua arte.”); noutra, uma voz
que procura aproximar o encarcerado da revelação,
ainda que seja por caminhos tortuosos e surpreendentes (“É
cavalgando a besta/ que a alma depara o criador”). Esse
tortuoso caminho que conduz à revelação também
está presente em As horas de Katharina, do mesmo Bruno
Tolentino: “Porque se fácil fora abandoná-lo,/que
difícil o ofício de voltar!/Com que dedicação
há que escalar,/ para habitá-lo, os graus desse
castelo.”
O que estas obras têm em comum com O livro de Scardanelli
é a clausura: a prisão propriamente dita n’
A balada do Cárcere e a cela de um convento, n’As
horas de Katharina. Há, porém mais do que isso para
irmaná-las: no caso da Balada, Ambrose é também
presa da loucura que se configura, por sua vez, na sede de simetria,
a tal ponto que só atendia àqueles que o chamavam
pelo número, “passara a ser algarismos”. Katharina,
mais afortunada, já que podia contar com a lucidez, por
outro lado parecia não perceber que Aquele por Quem tanto
procurava e por Quem se sentia abandonada estava ao seu lado o
tempo inteiro: “Fechei os olhos então,/fiz como ela
[a andorinha] e fui eu,/eu mesma minha prisão.” Em
ambas há a presença de quem está de fora
e procura despertar aquele que se encontra recluso: Ambrose pode
contar com a generosidade de seu colega de prisão, ainda
que esta não seja percebida, e Katharina com o próprio
Deus que lhe apresenta sinais o tempo inteiro. Porém, enquanto
nessas obras as atormentadas personagens podem contar com um Virgílio,
por sua vez sob os auspícios de uma Beatriz, para guiá-las
pelo inferno até chegar ao Paraíso, Frederico é
constantemente abordado por uma voz que procura apontar um caminho
inverso: “daquela funda treva não se sabe/ como voltar,
a altura não se anela” (Glosa de Mote Alheio).
A comparação acima levanta as seguintes interrogações:
seria O livro de Scardanelli um antípoda da obra de Bruno
Tolentino? Seria, por isso, uma reação luciferina
contra o esforço de resistir ao “mundo como idéia”?
De certa forma, pode-se afirmar que sim. A diferença moral
entre as duas vozes é mais que evidente, e elas repetem
num outro plano a famosa tentação no deserto de
que falam os Evangelhos. Por outro lado, não seria imprudente
afirmar o imoralismo da primeira face ao objetivismo moral da
segunda? Por que, antes, não observar que o objetivismo
moral de uma não ressalta, numa comparação
como a empreendida no parágrafo anterior, o evidente imoralismo
da outra? Lembremo-nos, afinal, de que a voz que se dirige ao
pobre Ambrose, a qual ocupa a primeira e a terceira partes d’A
balada do cárcere, é uma voz, dir-se-ia, direta,
facilmente identificada com a voz do próprio Tolentino,
em nada distante de sua particular visão de mundo, ainda
que não abra mão, é claro, da ficção
literária; ao passo que n’O livro de Scardanelli
Érico Nogueira abdica de sua própria voz com o fito
de abrir espaço para a voz de um esteta donjuanesco, tendo
concebido, assim, uma personagem bastante convincente, o que (e
encerrando aqui a comparação entre os dois poetas)
na Balada só acontece na segunda parte, em que o autor
se ausenta para deixar falar o Numeropata.
Essa tensão de ser e não ser, do existir e não
existir e, enfim, de desencontros tão reais quanto alucinantes,
é levada às últimas conseqüências
no "Cancioneiro Inglês", como já vimos.
O curioso é que Frederico, assim como Sandra Gama, é
uma personagem da qual não conseguimos visualizar um rosto
ou um gesto, mas com cuja ausência nos esbarramos sempre.
É alguém que parece não termos visto mais
gordo e, como diria a voz presente no "Cancioneiro",
“que, por isso, me entalou na porta.”
Essa tensão adquire um contorno ainda mais doloroso no
décimo terceiro soneto, o qual reproduzo na íntegra:
"A
morta que deflagro, a mesma estátua
semi-sorrindo a um mesmo cemitério,
indiferente e fria como a prata,
ensangüentada e morta com o ferro,
ouvi-a, quando o vento estava quieto,
falar na concha, que tem voz de nácar:
'Ó marinheiro, que no sal asséptico
mergulhas e afias tua faca,
era mancha de sangue que polias,
era ferro manchado que salgavas,
que me deixou com as feições tão frias
de ensangüentada prata, sem ressalvas?'
Entre o poema e ela, eu o escolhi;
ganhei um tema, porque o mais perdi."
Deparamo-nos
aqui com um drama que se elabora em bem construídas –
e por isso mesmo naturais - rimas toantes (estátua/prata,
cemitério/ferro; nácar/faca, quieto/asséptico)
e numa impressionante plasticidade que muito bem diz da feição
pétrea que se confirma numa condenatória permanência
em certo lugar: “A morta que deflagro, a mesma estátua/
semi-sorrindo a um mesmo cemitério”; ou que reproduz
a voz de quem, qual num pesadelo eterno, ou não se consegue
fazer ouvir, ou, quando isso ocorre, soa como se vinda das profundezas:
“ouvi-a, quando o vento estava quieto,/ falar na concha,
que tem voz de nácar”.
Esse poema dramático, mais precisamente os dísticos
que o encerram, remete a uma história segundo a qual Camões,
em meio a um naufrágio, teria preferido levar Os Lusíadas
a nado em detrimento de sua amante indiana que se afogava, compondo
depois em sua homenagem o famoso: “Alma minha gentil que
te partiste/ tão cedo desta vida descontente”. Pouco
se sabe da veracidade do ocorrido, mas factual ou não,
não se lhe pode negar o caráter exemplar: se nos
outros sonetos que compõem a série do “Cancioneiro
Inglês” a musa pode ser um mero delírio, no
presente caso há um “agravamento moral” na
medida em que o outro é visto como um possível obstáculo
à realização artística, tendo por
isso que ser ou eliminado ou reduzido a um modelo, ou senão
as duas coisas ao mesmo tempo: “Entre o poema e ela, eu
o escolhi;/ganhei um tema, porque o mais perdi.”
O aspecto mais assustador disso tudo é que não ocorre
a romântica “salvação pela arte”,
mas tão-somente “a salvação da arte”,
a se traduzir no sonho de se construir uma cidade para habitá-la
de estátuas em vez de gente (“apenas, entre alguém
e seu retrato,/para meu dano, preteri alguém.” Soneto
16); um imenso museu, em que a perfeição geométrica
manifesta nos mármores minuciosamente cinzelados não
seja perturbada pela imprevisibilidade dos movimentos ou pela
velhice ou pela morte que não pode existir porque a vida
é algo ausente.
Encerrando nossa incursão no interior dessa grande criação
literária como que saída de uma mente enferma, qual
o papel do "Caderno de exercícios" nessa metódica
loucura? De que modo essa terceira parte com ar de “outros
poemas” participa dessa unidade? Carlos Felipe Moisés
vem a nosso socorro dizendo que o Caderno de exercícios
é “a matriz de onde tudo proveio”. A essa observação
acrescentaria algo: “exercício” é, entre
outras coisas, – e a julgar pela notável variedade
formal – a busca incessante de um método. Logo, esse
caderno é o método de que vai se servir essa loucura.
Postado por Poeta Silvério Duque no POETA
SILVÉRIO DUQUE em 7/09/2010 04:02:00 PM.
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O
Beijo (que é baseado na trágica história
de amor entre Paolo e Francesca
, na Divina Comédia, de Dante) 1900, por Auguste Rodin
E
o que eu adoro em ti é a tua carne,
porque tudo o que é vivo se deseja;
assim, desejo em ti o meu tormento
que há-de crescer na proporção do tempo.
O que eu almejo em ti é a tua sombra,
pois toda boca habita as mesmas vozes
que hão-de tecer com gritos o teu nome
na tarde azul tragada pela noite.
Beijo o teu rosto como se existisse
algum lugar pr’além do Precipício,
e, junto ao gosto de teu lábio esquivo,
uma palavra, sobrescrita em sangue,
há-de adornar o verso em que eu me esqueço
e há-de extirpar, do amor, a fúria imensa.
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Venda
de escravos em Roma de Jean-Léon Gérôme

Nu sentado de Giovanni Boldini
aos
amigos e poetas, Antônio Brasileiro, Bernardo Linhares e
Patrice de Moraes.
Convive
com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavrae seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A
forma, caro leitor, sempre pareceu, aos olhos ineptos, como um
grande problema para quem nutria alguma pretensão poética;
durante a pantomima estilística promovida pelo modernismo
paulista de 1922, a forma figurará com um problema a ser
resolvido, ou melhor, um cancro a ser extirpado, e não
uma condição natural do fazer poético.
Ambas
as concepções são impressões simplórias
e vulgares de quem só gosta de acreditar em besteira; neste
caso, na idéia de que a forma é uma mera disposição
de versos e rimas, ao bem da escolha de cada poeta, principalmente,
àqueles que demonstram a mais completa inabilidade para
com ela. Digo isso por pura experiência, pois, de todos
os poetas que convivo e convivi – dos que conheço
pessoalmente ou dos que só sei de ouvir falar e ler –,
somente os que não dominam a forma reclamam dela; análogos
a muitos artistas plásticos de lorota, que escondem sua
escassez de talento através de um dito viés abstracionista.
Há muitos que se dizem poetas, desprezando o soneto e as
demais formas fixas, com a velha desculpa de que a forma é
uma “aprisionadora” da inspiração e,
conseqüentemente, do poema... entre outros despautérios.
A estes, vale o conselho de um velho romântico inglês,
que, aliás, intitula este artigo.
A
forma, no entanto, nada mais é do que a elaboração
interior do poema e é a idéia nele contida que a
comporá, não o contrário. Um decassílabo,
por exemplo, deve nascer decassílabo, quaisquer emendas
de rimas ou sílabas métricas resultariam numa deformidade
a comprometer, mais do que a qualquer outra coisa, o conteúdo
da poesia. Forma é assimilação de idéia;
compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém
possa ter da incorporação desta idéia ao
seu resultado final, enquanto arte. Todavia, é sempre bom
lembrar que, quando digo que não pode haver emendas, ou
apoios à composição de um poema, não
me refiro aqui à depuração, que é
um ato indispensável à criação poética,
e que nada mais é do que o exercício e, conseqüentemente,
a adequação de melhores recursos a uma forma já
existente, pois ninguém sai de um soneto alexandrino para
uma retranca, ou de um octossílabo pronto para um possível
decassílabo sáfico; apenas se lapida, se retoca,
fazendo com que um verso defeituoso, ou inexpressivo, como bem
considerou Manuel Bandeira, em seu Itinerário de Passargada,
carregue-se de poesia “pelo efeito encantatório de
uma ou de algumas palavras”, exprimindo, no entanto, a mesma
idéia e o mesmo sentimento que as substituídas,
mas “lhes dando superioridade” naquilo que é
a matéria mesma da poesia: a palavra. O exemplo de Bandeira
foi com Castro Alves, em um dístico de seu célebre
Mocidade e Morte:
Mas uma voz repete-me sombria:
terás abrigo sobre a lágea fria.
mudado,
então, para
Mas
uma voz responde-me sombria:
terás teu sono sobre a lágea fria.
Evidentemente,
muito melhor; segundo o próprio Manuel Bandeira, pelo desaparecimento
do eco de “fria” do i de “abrigo”, e,
ainda segundo o autor de Itinerário de Passargada, porque
“sono” evoca muito mais a idéia de “morte”.
Melhor nem mais didático exemplo para diferenciar emenda
de depuração existe ou não o encontrei.
A
forma não trabalha em causa própria, ela realiza
a idéia presente no poema, apropriando-a à rima,
à métrica e ao ritmo, como afirmara, certa vez,
T.S. Eliot. Pensar que um soneto são simplórios
catorze versos, distribuídos entre estrofes e um sistema
de ritmos e rimas é puro e irresponsável desmerecimento.
Antes, caro leitor, devemos olhar para um soneto muito mais por
seu caráter dissertativo, racional e objetivo; caráter,
aliás, presente em toda as artes, ao menos, é claro,
que alguém acredite que a arte não é uma
concepção exclusiva da humanidade. Desta maneira,
fica fácil perceber o quanto que a forma é muito
mais a realização de um conteúdo apropriado
à rima ou ao ritmo do que o contrário; percebe-se,
assim, que, para Camões, por exemplo, a forma, mais do
que uma imposição estilística de sua época,
é a única maneira pela qual sua poesia poderia se
realizar, ao contrário da dos Românticos que, tomados
de um sentimentalismo desenfreado e, muitas vezes urgente, pouco
se utilizaram do soneto, porque seus emotivos frenéticos
e alucinados não poderiam resultar em algo que advém,
justamente, do racional e do amadurecimento paciente. Isso, porém,
não impede que ninguém faça um soneto; já
a qualidade deste soneto...
É
bom lembrar, também, que a forma não estabelece
o conteúdo de um poema, muito pelo contrário; a
forma é o resultado mais imediato deste conteúdo
e nada denuncia mais o vazio, ou a hipocrisia, de um poeta –
intelectualmente falando – do que seu metro, do que sua
forma. A sinceridade do teor de um poema mede-se, muito mais,
pela sua disposição formal do que pela análise
crítica de qualquer um que seja. Mesmo desprovido de rimas,
ou não se dispondo no famoso formato de dois quartetos
e de dois tercetos, obedecendo a uma elaboraçã obedecendo-se
a uma elaboraçto de dois quartetos e de dois tercetoste,
pouco se utilizaram do soneto, porque seus emotivos poo interior.
Desta maneira, Jessé de Almeida Primo, em seu livro A natureza
da Poesia, afirma que “um soneto será sempre um soneto
ainda que os versos estejam distribuídos na forma prosaica
ou dispostos numa forma fixa completamente alheia, uma vez haver
tratamento específico da métrica além de
uma distribuição de rimas as quais determinam o
modo como os versos devem se agrupar”, não sendo
à toa, segundo o próprio Jessé, que ouvidos
treinados identificam a forma fixa pela própria elocução.
Mesmos os versos ditos “livres” compensam sua falta
de regularidade métrica e estrófica por meio de
uma progressiva simetria rítmica, pois nenhum verso é
livre para quem realiza um bom trabalho, segundo, novamente, o
velho T.S. Eliot. Em suma, verso livre, ou metrificado são,
em natureza e maneira de composição, a mesma coisa.
Para
que as coisas que eu digo não soem a ninguém como
uma alegoria simplória – o que não seria de
todo ruim, pois o que é uma alegoria senão “a
substituição do abstrato pelo aparentemente concreto”,
como bem definiu Coleridge? –, vou buscar um exemplo tão
sólido quanto perigoso: Dante Alighieri.
A
relação poesia-prosa nunca foi um problema para
Dante, ele soube, como nenhum outro poeta, quais as diferenças
entre um problema de estrutura e um problema de natureza. Assim
sendo, Dante nunca foi temeroso ao locupletar sua poesia com conteúdos
de natureza filosófica, como ornar, com elementos puramente
poéticos, uma prosa qualquer, e, por isso mesmo, nada foi
a mais do que um poeta – mas, durante séculos, um
poeta como nenhum outro. Da mesma maneira, a forma, para Dante
Alighieri, sempre refletiu o serviço, por assim dizer,
que uma obra de compromisso, ao mesmo tempo, poético e
didático, como a Divina Comédia, procurou prestar
em prol da poesia. O melhor exemplo disto tudo, segundo César
Leal, em Os cavaleiros de Júpiter, é a importância
que o número exerce em sua obra, até porque, toda
Divina Comédia é concebida numa estrutura numerológica,
criando uma organização destinada, puramente, a
sustentar a enorme cadeia de símbolos de seu tão
famoso poema, como se pode ver em:
E
quando l'arco de l'ardente affetto
fu sì sfogato, che 'l parlar discese
inver' lo segno del nostro intelletto,
la prima cosa che per me s'intese,
“Benedetto sia tu”, fu, “trino e uno,
che nel mio seme se' tanto cortese!”.
E
seguì: “Grato e lontano digiuno,
tratto leggendo del magno volume
du' non si muta mai bianco né bruno,
solvuto
hai, figlio, dentro a questo lume
in ch'io ti parlo, mercè di colei
ch'a l'alto volo ti vestì le piume.
Tu
credi che a me tuo pensier mei
da quel ch'è primo, così come raia
da l'un, se si conosce, il cinque e 'l sei;
e però ch'io mi sia e perch' io paia
più gaudïoso a te, non mi domandi,
che alcun altro in questa turba gaia”.
(...)
Para César Leal, o número 9, por exemplo, quase
sempre significa um “milagre”, por ser múltiplo
de 3, a Trindade, que, em Dante, sempre será, o número
3, uma imagem cinética. O número 9 é a Sabedoria
Moral e Metafísica, representada por Virgílio, que
é o resultado da soma de 6+3, referente aos 63 cantos em
que Virgílio acompanha Dante no Inferno; depois, restam
37 cantos, relativos à intervenção de Beatriz;
3+7 é 10, símbolo da Suprema Sabedoria. Cada cântico
se divide em 33 cantos, tempo em que Cristo, como homem, viveu
entre nós, que, somados entre si, chega-se a 99 que, associado
ao Introdutório é igual a 100, chegando-se a máxima
Perfeição. O resultado formal mais imediato de tudo
isso, caro leitor, é a terza-rima, correspondendo diretamente
ao conteúdo da Divina Comédia.
Outro
exemplo, digamos, menos “clássico”, mais de
sólida representação para o que afirmo sobre
a forma, enquanto realização da obediência
ao conteúdo poético, caro leitor, encontra-se em
Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.
Num
poema ambientado e, de certo modo, empenhado em discorrer sobre
o Sertão Nordestino, mais necessariamente a respeito da
seca que, ciclicamente, assola toda aquela região, mas,
também, sobre o desprezo das autoridades em relação
a este fenômeno climático, criando, por sua vez,
um verdadeiro cataclismo econômico, produto da exploração
de um e da extrema ignorância de outros, além de
falar sobre um retirante esperançoso, resultado direto
do descaso, ignorância e desespero, e de sua caminhada pelo
sertão pernambucano, tão calcinado, numa espécie
de epopéia às avessas, carregada de um fortíssimo
apelo político-social, onde a Viagem, maior e mais antigo
tema da história humana, ganha um aspecto profundamente
trágico, encarnando um herói picaresco atípico,
à maneira de um anti-Odisseu sertanejo diante da caatinga
– revés do mar – e do desinteresse político
– revés dos deuses –, a se aliar aos vários
aspectos religiosos e folclóricos, que se amalgamam sobre
certo aspecto medievo, formando um típico e grandioso poema
brasileiro, que não poderia ter outro resultado formal
senão uma narrativa de ritmo gilvicenteano, diretamente
associada ao cordel, com a diferença de que seu narrador
deixa de ser um mero contador de estórias para protagonizar,
na carne e no espírito, todo o sofrimento em que consiste
esta caminhada, onde o uso da medida velha espelha todos esses
aspectos e incide, diretamente, sem seu teor dramático.
Leiamos:
Desde
que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de Vida Severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais Severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
(...)
Examinando atentamente os dois exemplos anteriores, torna-se impossível
desconsiderar a forma como a obediente adequação
de um ritmo apreendido e a um conteúdo, de igual maneira,
internalizado. Esta, outrossim, vale para qualquer gênero,
caro leitor, pois o que é um conto, ou mesmo um romance,
a não ser uma forma resultante de um conteúdo racionalizado,
que, por sua vez, alia-se a um conteúdo adequado? Uma novela
é para a prosa algo tão formal quanto um soneto
para a poesia, até porque, ambas, são dotadas da
mesma natureza. Para Jessé de Almeida Primo, em A natureza
da Poesia, a diferença reside apenas na disposição
rítmica e prosódica de cada uma delas. Já
Olavo de Carvalho, também lembrado por Jessé, estabelece
essa diferença tanto pela elocução quanto
pela quantidade, em seu livro Gêneros literários
e seus fundamentos metafísicos. Para Olavo, a diferença
entre poesia e prosa reside na continuidade de uma – a poesia
– e na descontinuidade da outra – a prosa. Se o texto
traz algo de seccionamento, seja este rítmico ou métrico,
eis o verso, eis a poesia; se contrário, se vai e não
volta, se nele existe algo que não se reitera, que não
retorna, temos, então, segundo Olavo de Carvalho, a prosa.
Não há diferença de significação
entre prosa e verso o que há, e o filósofo deixa
isso bem claro, é uma diferença no modo de elocução.
Para isso mesmo, ambas, poesia e prosa, podem viver separadas,
uma com seus sonetos, a outra com seus contos, sem perder sua
natureza, muito menos sua função; qualquer um que
se tenha debruçado sobre uma Ode de Álvaro de Campos,
ou no Romance d’ A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, sabe
muito bem do que estou falando.
Essas
coisas são tão óbvias, caro leitor, e, de
certo modo, tão simplórias, que é difícil
de acreditar que alguém as ignore com tanta veemência,
mas não faltam exemplos de que tamanha asneira prolifera-se,
por aí, como baratas no esgoto, principalmente quando este
esgoto são nossas Universidades, impregnadas de ideologias
infecciosas e incompetências crônicas. Não
faltam exemplos de idiotas que não acreditam na forma como
a patente e espontânea conseqüência da idéia
de um poema que – olha o Jessé de Almeida Primo,
aí, de novo – carrega em si o caráter mimético
que, de tal sorte, a forma vem a existir para calcular, bem como
para dizer algo do texto, que o texto não diz, por mais
que isto, antagonicamente, só seja possível, através
do texto, por meio da “prosódia e do ritmo”
que, para o autor de A natureza da Poesia, são sempre encenação
de alguma coisa.
Acreditar
que um soneto são simples catorze versos e não o
resultado natural da concepção poética é,
paradoxalmente, quase que dar crédito ao piano, pela bela
interpretação de um concerto, do que ao pianista
que, virtuosamente o dedilha, visto que, ao desprezar o resultado
acabado, ele teria mais credibilidade em sua forma do que em sua
essência. Vejamos então, leitor amigo, outro exemplo
simples, também utilizado pelo Jessé Primo:
Na cinza desta tarde me comovo,
levado por lembranças tão pequenas
que me volta o desejo de partida
quando já estou bem próximo à chegada
e me sobram razões de ter ficado
sem sonhar o momento de partir
nem cultivar tenções de continuar.
Procedo como um louco que se perde
nas voltas renovadas do caminho
e sem saber repisa a mesma trilha.
Repasso o longo espaço percorrido
e me faço perguntas sem resposta.
Onde terei deixado o que perdi
ou que terei deixado ao me perder.
Os
catorze versos estão aí, embora se sinta a falta
dos já citados dois quartetos e dois tercetos ou, neste
caso mais específico, os três quartetos e um dístico,
pois se trata de um soneto inglês. Por que...? Para Jessé
de Almeida Primo, há, neste belíssimo poema de Reynaldo
Valinho Alvarez, um ritmo muito específico que predomina
nos dose versos, levando-se em questão uma leve variação,
que, por sua vez, confirmam e credibilizam o ritmo original, como
na retomada de fôlego a partir do oitavo verso, no qual,
ainda segundo Jessé, “tudo começa outra vez”,
até a mudança mais acentuada exercida pela “uniformidade
prosádica dos dois versos finais”; Jessé Primo,
então, conclui que, “se a rima é igualdade
de som”, como também afirmara o grande Manuel Bandeira,
“neste soneto mostra ser também uma igualdade no
ritmo, ou seja, a forma fixa é, antes de tudo, definida
pela melopéia, de modo que, o agrupamento de versos e as
rimas terminam por ser um detalhe”. Nota-se, neste soneto
de Reynaldo Valinho Alvarez, uma literal poetização
daquilo que Olavo de Carvalho afirma a respeito do caráter
de descontinuidade do gênero poético; tanto pelo
ritmo, quanto pelo tema (neste caso, novamente, a Viagem), que
o verso é verso quando nele opera “algum princípio
de descontinuidade”; para Olavo de Carvalho, isso pode ocorrer
“pelo modo rítmico e métrico”, ou por
algum tipo de “reiteração sonora”. Mas,
no soneto de Valinho Alvarez, além dos princípios
citados, no que concerne à sua forma, ainda se é
possível considerar o próprio tema do soneto, acabando
por dar ação a estes princípios, ao abordar
o tema da viagem ou, à maneira lingüística
hedionda dos construtivistas, da dicotomia: caminho/retorno e
mesmo ganho/perda. A intenção desperta um “ritmo
internalizado pelo exercício”, diz Jessé de
Almeida Primo, e, desta maneira, a forma obedece e se adequa.
O resultado disso, como vemos, é um soneto, e não
catorze versos.
E por falar em soneto...
Se
se perguntar a quaisquer alunos de nossas melhores escolas, ou,
até mesmo, aos neófitos do Materialismo Histórico,
os quais compõem a grande maioria de nossos universitários,
não só nos cursos de Letras, mas, nas Universidades
brasileiras, como um todo, sobre o que seria um soneto, ouvir-se-ia,
entre ludibriações de todos os tipos (recurso muito
comum àqueles que não gostam de admitir suas ignorâncias;
talvez, a coisa mais honrosa que a grande maioria destas pessoas
poderia fazer em vida) e retumbantes, porém dignos, “não
sei!”, a resposta mais comum seria: “é um poema
de quatorze versos, dividido em dois quartetos e dois tercetos”.
Afirmação esta muito comum de se ouvir com relação
àquilo que se perguntou (pois para a grande maioria dos
alunos de Literatura, seja lá qual for o seu grau de instrução,
extraviados do mais simples e decente rumo intelectual, esta será
toda consideração, a respeito deste assunto, que
eles terão em toda sua vida acadêmica), mas que,
de longe, açambarcaria esta forma que, dentre as “castas”
poéticas em que se diversifica o gênero lírico,
é a que exige, de seu criador, o maior nível de
intelectualidade, de concretude e de pensamento lógico-reflexivo,
ou seja, a priori, o soneto precisaria ser rimado, metrificado
e apresentar uma estrutura dissertativa em seu discurso, exigindo
de seu autor grande conhecimento daquilo que faz e do que fala
através dele (além do esqueleto estrófico
tão comumente citado), que, em nada, ajudaria a compreender
a grandeza e a complexidade desta forma, a qual se encontra no
cerne de toda a Poesia Ocidental há séculos, e,
ainda assim, é o mais sofisticado modelo poético
existente, mostrando-nos, só por motivo de exemplo, que
não foi à toa que parnasianos e simbolistas –
tão diferentes entre si – preferiam-no, incondicionalmente.
Desde
os exemplos mais clássicos, como os de Petrarca, Camões
e Shakespeare, aos melhores mestres deste gênero em nossa
literatura colonial e pré-moderna, como Gregório
de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Machado de Assis, Raimundo
Correa, Cruz e Sousa e Olavo Bilac, o soneto tem se mostrado o
fim a que se dirigirem os versos de muitos dos maiores poetas
do mundo há mais de meio milênio. Nem mesmo o advento
do Modernismo – e, quando falo de Modernismo, não
me refiro, aqui, à pantomima paulista de 1922, nem à
Disney World canibalística que a ela se seguiu, antes,
refiro-me àquele Modernismo onde o clássico e o
novo convergiam sem nenhum tipo de inconveniência ideológica
ou de extravagância lírica, como é o caso
do Modernismo de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Augusto dos
Anjos, logo retomado pelas gerações de 30 e 45,
por exemplo – destruiu a importância e a tradição
às quais o soneto se vale até os dias de hoje; pelo
contrário, o Modernismo cultivou um soneto dotado de rigor
e beleza como jamais se viu, mas, antes, isso, também,
já se apresentava em muitos de seus precursores, em todo
o mundo, a exemplo de Charles Baudelaire...
Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux;
retiens les griffes de ta patte,
et laisse-moi plonger dans tes beaux yeux,
mêlés de métal et d'agate.
Lorsque mes doigts caressent à loisir
ta tête et ton dos élastique,
et que ma main s'enivre du plaisir
de palper ton corps électrique,
je vois ma femme en esprit. Son regard,
comme le tien, aimable bête,
profond et froid, coupe et fend comme un dard,
et, des pieds jusques à la tête,
un air subtil, un dangereux parfum,
nagent autour de son corps brun.
de Fernando Pessoa...
Olha,
Daisy, quando eu morrer tu hás-de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
que, embora não o sintas, tu escondes
a grande dor da minha morte.
Irás
de Londres pra York, onde nasceste
(dizes —Que eu nada que tu digas acredito…)
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes
(Embora
não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará. Depois vai dar
a
notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!...
Augusto
dos Anjos
Que força pôde adstrita e embriões informes,
tua garganta estúpida arrancar
do segredo da célula ovular
para latir nas solidões enormes?!
Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
suficientíssima é, para provar
a incógnita alma, avoenga e elementar
dos teus antepassados vermiformes.
Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
a escala dos latidos ancestrais...
E irás assim, pelos séculos, adiante,
latindo a esquisitíssima prosódia
da angustia hereditária dos teus pais!
* * *
Se, para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em épocas mais
romanescas, o poeta, ao compor um bom soneto, não descreve,
de forma ingênua, as disposições da alma,
as aspirações, as dores, os desejos, as percepções
das coisas a sua volta, com uma grande concentração
interior, antes, dirige, com calma e precisão, o seu olhar
aos mitos, à história, ao presente, no mesmo momento
em que se reintegra a si mesmo, limitando-se e se contendo, tornando
o soneto uma das construções mais complexas e difíceis
em que um poeta pode se aventurar, para o Modernismo, esta prática
se torna mais difícil e mais fluida. Em outras palavras,
mais complexa para o seu autor, mas compreensível a quem
o lê.
Segundo
César Leal, em Os Cavaleiros de Júpiter, “o
elemento protéico do soneto é o pensamento reflexivo”,
mesmo quando este “alcança uma ordenação
mágica como é freqüente em Jorge de Lima”.
É, no soneto, que conhecimento, ciência e instrução
geral se fundem com legitimidade, por isso mesmo, no Modernismo,
apesar do descrédito e difamação de muitos,
o soneto se aperfeiçoou, tornado-se, inclusive, “independente
e diverso em relação aos modelos clássicos”
– afirma César Leal –, apresentando –
ainda de acordo com o poeta e ensaísta pernambucano –
“traços estilísticos inconfundíveis”,
como são os casos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinícius
de Moraes, Bruno Tolentino, Sosígenes Costa, Mário
Quintana, Emílio Moura, Ariano Suassuna, Dante Milano,
Ildásio Tavares, Carlos Pena Filho e até mesmo Carlos
Drummnd de Andrade e Ruy Espinheira Filho... isso sem falar no
pioneirismo de Augusto dos Anjos e em autores menos conhecidos,
ou, naqueles, onde a tradição do soneto não
acompanha a obra do autor, embora por lá se encontrem exemplos
magníficos como os de Edmir Domingues, Florisvaldo Mattos,
Maria da Conceição Paranhos e ainda, mesmo que escassos,
Ferreira Gullar e Hilda Hiltz, além de Reynaldo Valinho
Alvarez (cuja máxima intensidade de sua poesia é
justamente alcançada em seus sonetos peculiaríssimos),
entre outros tantos que agora me escapam à lembrança.
O
soneto moderno – como todo bom poema de qualquer época
– deve estar pleno de sentido, de significados, e não
ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso; deve aparecer
e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação
auditiva” (lá vem o César Leal, de novo),
tão comum em Milton, segundo T. S, Eliot, como no próprio
Eliot, mas também em Castro Alves e até mesmo em
Ascenso Ferreira, e, por recortar uma realidade instigante, por
ter uma penetração psicológica muito intensa,
por proporcionar uma fácil compreensão de tudo e
de si mesmo, é uma obra da razão recortada pelos
malabarismos lingüísticos e dos signos comuns, como
é o caso, amigo leitor, deste extraordinário soneto
de Antônio Brasileiro que, à maneira da inovação
formal proposta por mestres como Jorge de Lima, e mantendo aquela
tradição oral e simbólica comum em Vinícius,
é-me uma das mais belas realizações do gênero
e, a ele, pode-se aplicar todos os conceitos que acabei de discorrer,
neste artigo:
Não passar. Ficar para semente.
Não era isto que meu pai queria?
Sentava-se na rede e adormecia
julgando ter domado a dama ausente.
E sonhava talvez. Talvez menino
montando burros bravos, nu, ao vento;
um homem é a sua ação sobre o destino.
Meu pai então fazia um movimento
e a rede, a adormecer, estremecia:
pequenos sustos no tempo, era só isto.
E escancarava os olhos duramente
para mostrar que se Ela o procurava
era de cara a cara que A encarava.
Que Deus guarde meu pai. Eternamente.
Candeias/Feira de Santana, março de 2009/abril de 2010.
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